Por Fernanda Lopes
Era uma vez um tempo em que a cultura chegava até nós de forma quase artesanal. Minha mãe me dava livros que tinham marcado a adolescência dela, o professor de português insistia que havia uma ordem natural para se ler os clássicos, e minha tia, entre um café e outro, soltava frases que eu só muito depois descobriria serem versos de Drummond. Havia um fio invisível ligando as gerações pelo que valia a pena ser lido, visto e escutado. Cada pessoa que fazia parte da minha vida era, de certa forma, uma curadora particular, empilhando referências na minha estante mental, me apresentando mundos que eu não encontraria sozinha.
Agora, quem decide o que merece ser lembrado?
A resposta está nas engrenagens ocultas dos algoritmos, aquelas entidades matemáticas que supostamente nos conhecem melhor do que nós mesmos. Eles vasculham nossos cliques, rastreiam nossas preferências e nos entregam um cardápio cultural sob medida. Se eu passar dois segundos a mais olhando para um vídeo de receita, lá vem uma avalanche de chefs sugerindo molhos para massa. Se eu curtir um tweet sobre literatura russa, de repente estou submersa em análises de Dostoiévski como se tivesse assinado um pacto silencioso com Tolstói. Hoje, quem me sugere músicas, filmes e livros é um algoritmo sem rosto, programado para mapear o que eu consumo e, com base nisso, decidir o que devo consumir a seguir. Ele me observa, anota meus padrões, me empurra para dentro de bolhas confortáveis e me mantém ali, alimentando-me com o que é previsível, familiar e, acima de tudo, rentável.
O problema do algoritmo como curador é que ele não tem memória afetiva. Não sabe que meu pai me apresentou ao Queen em uma tarde chuvosa ou que aquele poema lido aos quinze anos mudou minha forma de ver o mundo. É incapaz de compreender que certas músicas me fazem voltar a momentos específicos da minha vida, que algumas histórias me marcaram não pelo enredo, mas pelo contexto em que as li. E, pior, ele não gosta do inesperado. Uma professora pode me convencer de que um livro difícil vale a pena pelo desafio, mas o algoritmo não quer me ver desafiada. Ele quer me manter confortável, clicando, consumindo mais do mesmo. A internet nos prometeu acesso irrestrito ao conhecimento. Mas, ironicamente, nunca estivemos tão limitados.
O problema é que esses algoritmos não têm memória afetiva. Eles não recomendam aquele livro que marcou a infância da minha mãe, porque não têm ideia de que histórias se transmitem entre gerações. Eles não valorizam aquele filme que um professor apaixonado exibe na sala de aula, porque não compreendem o impacto de uma experiência coletiva. Eles não sabem que às vezes é preciso sair da própria bolha, ler algo que nos desafia, ouvir uma música que estranhamos no começo, mas depois nos conquista. A cultura, quando mediada por humanos, tem espaço para surpresas, para encontros inusitados, para recomendações que não seguem lógica matemática, mas sim o instinto, a paixão, o acaso. Quando transferimos essa função para os algoritmos, corremos o risco de nos tornarmos consumidores passivos, reféns de um gosto previsível, sem desvios, sem descobertas inesperadas.
Talvez estejamos vivendo em um mundo onde a cultura está cada vez mais sendo moldada pelo que os dados dizem que nós gostamos, e não pelo que realmente tem valor ou significado. Os clássicos, aqueles livros, músicas e filmes que atravessaram séculos e marcaram gerações, correm o risco de serem esquecidos, soterrados por tudo que está na moda agora. O que está em alta, o que é viral, isso é o que domina o palco, enquanto as descobertas espontâneas e acidentais – aquela música que você ouviu por acaso em uma rádio, um livro que você encontrou por acaso na biblioteca, ou aquele filme que você assistiu sem esperar nada e se encantou – se tornam cada vez mais raras. Agora, a maioria das coisas que vemos e ouvimos vem de sugestões baseadas no que a gente já consumiu antes. Estamos presos em uma bolha. O que não segue essa lógica, o que não gera tantos cliques ou compartilhamentos, acaba ficando de fora, mesmo que seja algo incrível. E no fim, vamos perdendo o gostinho da surpresa, de se deparar com algo que nunca esperávamos encontrar, mas que acaba sendo especial.
Mas nem tudo está perdido. Se o algoritmo quer me deixar na minha zona de conforto, que assim seja. Mas eu posso me rebelar. Posso sair por aí perguntando às pessoas o que elas estão lendo, posso me perder em uma biblioteca, posso comprar um livro sem saber nada sobre ele. No fundo, a curadoria da nossa vida ainda pode ser nossa. Só precisamos lembrar de não delegá-la completamente a uma máquina. Por fim, acho que a cultura deve ser menos sobre eficiência e mais sobre aventura. Menos sobre prever o que gostamos e mais sobre nos apresentar ao desconhecido. Porque se há algo que os algoritmos ainda não aprenderam, é que algumas das melhores descobertas acontecem justamente quando a gente não está procurando por elas.
Fernanda Lopes, Jornal Choraminhices.