Por Fernanda Lopes
Outro dia, no meio de uma correção de redações, parei. Caneta na mão, caderno aberto, mas a cabeça longe. O que eu estava fazendo ali? Corrigindo mais um texto de um aluno que não sabe, de fato, o que está fazendo. E não por preguiça. Nem sempre por falta de interesse. Mas porque nunca lhe mostraram que escrever é mais do que juntar frases — é, antes de tudo, aprender a caminhar entre elas.
Eu cresci ouvindo que escrever bem era essencial. Professores sempre diziam isso com aquele tom sério de quem está revelando um grande segredo. “Quem escreve bem, se dá bem”, diziam. “Saber escrever abre portas.” E eu acreditava. O problema é que, junto com essa certeza, vinha um silêncio enorme sobre como escrever bem. A cobrança existia, mas o caminho? Esse ninguém mostrava. Esse “escrever bem” parecia um bicho de sete cabeças. Me mandavam produzir textos como se alguém me jogasse no meio do mar e gritasse: “Agora nada!” Só que ninguém tinha me ensinado a nadar.
Desde cedo, os alunos aprendem que o texto tem que ter começo, meio e fim — a tal introdução, desenvolvimento e conclusão. E pronto. Parece simples, né? Mas aí eles se sentam na cadeira, pegam o lápis e… travam. Porque ninguém lhes explicou o mais importante: como se faz para tirar a ideia da cabeça e colocá-la no papel de um jeito que faça sentido. Só cobram: “Cadê a produção?”, “Já terminaram?”, “Têm que melhorar a escrita!”. Mas melhorar como, se ninguém mostra o caminho, se não há treino, se cada erro vira só um X vermelho — e nunca uma conversa?
A verdade é que nós, professores, realmente vivemos cobrando que os alunos escrevam bem, que façam textos “com começo, meio e fim”, que desenvolvam ideias claras, argumentem com coerência e concluam com firmeza. Que dominem as tais estruturas. Mas… como? Como é que exigimos uma construção sem mostrar o alicerce? Como é que pedimos voo de quem nunca aprendeu a bater as asas? E sem um entendimento real do processo, como esperar que os alunos possam se expressar com clareza e profundidade? Como exigir que desenvolvam textos complexos se não lhes mostramos, de fato, o que é construir um pensamento, como colocá-lo no papel e lapidá-lo até chegar à forma final?
E aí o que acontece? O aluno tenta, escreve sem saber direito por onde começar, se perde no meio, termina de qualquer jeito. Entrega e espera aquela nota fria, seguida de uma devolutiva que aponta: “frase mal construída”, “falta de coesão e coerência”, “melhorar a argumentação”. Só isso. Nenhuma conversa sobre como melhorar. Nenhum elogio ao trecho bonito que, sim, estava ali no meio da bagunça. Nenhum incentivo para tentar de novo, com calma. Cadê o treino? Cadê o apoio?
Nós exigimos que os alunos escrevam, mas eles não têm tempo para praticar. Não têm espaço para errar, nem para descobrir a própria voz. E escrever, olha… escrever é uma coisa muito pessoal. É como afinar um instrumento que ainda nem sabemos tocar. Requer tempo, escuta, tentativa e erro. Vejo muitos alunos frustrados. A maioria tem até boas ideias, mas travam no começo. Se perdem no meio. Desistem no fim. O medo de errar vira uma barreira. A insegurança cresce. A escrita, que deveria ser uma ponte entre o que se pensa e o que se sente, vira um muro. Alto. Cinza. Intimidador.
A escrita é processo. Mas, na escola, a tratam como produto. Como se um texto surgisse pronto da cabeça, de forma mágica: polido, coeso, impecável. E não é assim. Eu mesma, professora, passo por isso. Escrevo, apago, mudo, travo, repenso, volto. E se é assim comigo, adulta, com prática, imagina com um adolescente que mal descobriu que pode ter uma voz? Ninguém mostra que escrever é rascunhar, apagar, reescrever, repensar. Que é prática. Que é processo. Que é tentativa.
O que falta não é talento. É oportunidade. Oportunidade de escrever com liberdade. De errar sem medo. Falta aula de prática. De escrita viva. De pegar no lápis sem obrigação. De construir parágrafo por parágrafo como quem constrói uma casa. Com paciência. Com orientação. Com vontade de ver aquilo crescer.
Para mudar, precisamos parar de correr atrás de textos perfeitos e começar a valorizar o processo. Criar espaços de escrita criativa, oficinas de reescrita, momentos de escuta, orientação, partilha. Mais leitura crítica, mais conversa, mais tempo de maturação. E, acima de tudo, mais professores que saibam dizer: “esse parágrafo aqui ficou ótimo, por quê você não tenta desenvolver mais esse ponto?” ou “eu gostei dessa ideia, mas acho que dá pra clarear um pouco mais aqui, vamos tentar juntos?”
Ensinar a escrever é um gesto de cuidado. É ajudar o aluno a se escutar. A organizar o caos de pensamentos. A transformar dúvida em pergunta, pergunta em caminho, caminho em voz. E isso exige mais do que fórmulas. Exige um olhar que vá além da estrutura, que enxergue o autor por trás do texto. Precisamos de menos teoria engessada e mais prática real. Mais incentivo pra escrever por prazer, por expressão, por tentativa. Escrever de verdade, com erros, com tropeços, com recomeços.
Não escrevemos para preencher espaço. Escrevemos para entender o mundo. E isso leva tempo. A escrita é pensamento, é emoção, é construção de identidade. Quem escreve, se descobre. Mas isso só acontece se a escola entender que ensinar a escrever vai além de ensinar o formato. Tem que ensinar o caminho. A caminhada. E, no fim, um professor de verdade é quem acredita que ali, naquele aluno que escreve frases tortas, pulsa uma voz.
Fernanda Lopes, Jornal Choraminhices.
Meus Parabéns Fernanda, realmente isso é lamentável no meio Educacional, transformamos a Escrita como um produto a ser produzido em grande escala, nesse caso é uma denúncia que Docentes de Língua Portuguesa devem fazer com certa Vontade de Ação, se a Escrita é primordial ao aluno, mas o governo Estadual é culpado nessa e seu Secretário o Vilão.
Seu texto é um Relato de Experiência muito parecido com “Relato de um Náufrago” de Garcia Márquez e “Messias Andaluz” de Taissier Khalaf com seu posicionamento ajudar na sua compreensão da realidade dos alunos e colegas Docentes