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Por Leni Lourenço Oliveira.
“Freud – Além da alma
Conceito de alma. De um ponto de vista psicanalítico, tendo mostrado que a alma é um conceito de múltiplas interpretações, Jung dirá que ela corresponde a um estado psicológico que deve gozar de uma certa independência nos limites da consciência… A alma não coincide com a totalidade das funções psíquicas. (Designa) uma relação com o inconsciente e também… uma personificação dos conteúdos inconscientes… As concepções etnológicas e históricas da alma mostram claramente que ela é, antes de mais nada, um conteúdo relativo ao sujeito, mas também ao mundo dos espíritos, o inconsciente. E é por isso que a alma sempre tem em si algo de terreno e sobrenatural. ” (Jean Chevalier e Alain Gheerbrant)
O filme “Freud – Além da alma”, protagonizado por Montgomery Clift – a personagem Freud – representa, do ponto de vista literário, a transposição para a tela cinematográfica o gênero romance de formação. Na película são exibidos os relatos históricos do surgimento, evolução e desenvolvimento da Psicanálise – jovem ciência fundada por Sigmund Freud, o grande descobridor dos subterrâneos da alma humana. Aliás, o narrador do filme John Huston, considera a descoberta de Freud tão importante e tão grande quanto as descobertas do astrônomo polonês Nicolau Copérnico – desenvolvedor da teoria heliocentrista – bem como de Charles Darwin – fundador da fórmula e doutrina evolucionista, segundo a qual as espécies procedem umas das outras por evolução. A psicanálise[1] seria para John Huston, conforme o enredo fílmico sugere, a terceira maior descoberta na história do homem.
No filme “Freud – Além da alma” encontramos discussões sobre tópicos fundamentais da Psicanálise: a histeria – a doença da moda da sociedade vienense da época –, a hipnose, os sonhos, o Complexo de Édipo, a sexualidade e, finalmente, as associações livres – método consagrado da análise psicanalítica freudiana. Diferente de seus contemporâneos – fisiologistas, mecanicistas médicos, a oposição declarada contra o Pai da Psicanálise e suas teorias – para Freud as desordens mentais não eram de causas somáticas como pensava a sociedade médica vienense, mas, ao contrário, estavam instaladas no “inconsciente” – sua grande descoberta – parte da estrutura psíquica depositária de todos os sentimentos e emoções reprimidos, recalcados. Para Freud, as especulações metafísicas sobre o inconsciente não eram simplesmente dar voos às fantasias científicas como pensavam a vanguarda médica: eram assuntos de vida e de morte (grifo meu).
Para corroborar a tese de que as anomalias mentais não eram de origem somáticas e sim psicológicas, nas peripécias, mudanças repentinas de situação do filme, apresentam-se induções hipnóticas praticadas ora por Freud ora por Charcot – médico francês e um dos defensores do hipnotismo como prática médica. O objetivo das práticas era demonstrar, por exemplo, que a histeria – desencadeadora de diversas anomalias físicas (tremedeiras, cegueiras temporárias, paralisias etc., sintomas encarados como fingimentos e encenações teatrais dos pacientes perante o médicos fisiologistas) era uma doença de fundo psicológico. A partir destas considerações fica demonstrado, efetivamente, que a hipnose – método catártico baseado na sugestão – consegue fazer com que o paciente, durante o transe hipnótico, lembre-se dos eventos traumáticos causadores de seus problemas físicos.
Por outro lado, fica demonstrado, também, para a conservadora sociedade da época vitoriana, que a sugestão manipulada pelo hipnólogo conseguia apenas fazer desaparecer o sintoma físico temporariamente, porque após ser retirado do transe por intermédio de um método tradicional, um estalar de dedos, por exemplo, os sintomas que durante o transe desapareciam, voltavam a atormentar o paciente. Com isso ficou também demonstrado que a hipnose é uma forma de tratamento que descobre a origem da doença ou do trauma vivenciado, todavia, não curava do paciente os efeitos provocados e sentidos por ele. Além disso, ficou provado que após a “desipnotização”, o paciente poderia ou não se lembrar daquilo que falava durante a sessão de hipnose, de acordo como comando do hipnotizador.
O grande momento do filme, sem nenhuma dúvida, refere-se à descoberta do Complexo de Édipo – a relação de amor e ódio vivenciada pela criança durante a fase fálica – a terceira fase do desenvolvimento psicossexual da criança que ocorre mais ou menos entre os 3 (três) e 5 (cinco) anos de vida. Serviram de modelo para explicar a relação incestuosa edipiana tanto uma paciente de Freud (Cecily) quanto ele mesmo. John Huston, diretor e produtor cinematográfico de “Freud – Além da alma” conseguiu articular as descobertas de Freud com as próprias experiências pessoais do psicanalista, como a teoria que desenvolveu sobre o Complexo de Édipo, fundamentando-se na relação com seu pai morto.
Fica bem explícito no filme que a criança já em idade bem prematura sente uma atração sexual pelo sexo oposto dos progenitores. O menino, por exemplo, sente atração sexual pela mãe e vê o pai como um adversário com quem tem que dividir o amor dela. Tal qual na tragédia grega “Édipo-Rei” de Sófocles, o menino deseja, sem saber ao certo, assassinar o pai para ter a mãe consigo. Para a sociedade médica da época esta descoberta de Freud soou como uma piada de mau-gosto contra os bons costumes e a moral sexual daquele momento histórico, visto que a classe médica não acreditava que a criança pudesse ter desejo sexual, principalmente ter desejo sexual por um membro da própria família, fosse a mãe no caso dos meninos – Complexo de Édipo –, fosse o pai no caso das meninas – Complexo de Electra[2].
Um outro grande momento do filme, senão o mais importante, refere-se aos sonhos, seus símbolos[3] e seu significados. Na película, revelam-se as duas grandes descobertas revolucionárias para a interpretação dos sonhos[4]; a primeira é que a chave para a significação dos sonhos é considerar que os sonhos, de um modo geral, representam a realização de um desejo ou, segundo, um mecanismo do inconsciente – que aloja todas as necessidades, desejos e instintos, na maioria das vezes, sexuais, e algumas vezes de natureza destrutiva. Através dos sonhos retratados no filme, são apresentados ao público dois conceitos fundamentais da análise onírica: o conteúdo manifesto e o latente. No enredo fílmico sugere-se que o conteúdo manifesto do sonho expressa, indiretamente, um desejo sexual latente com a ajuda de símbolos.
Este ponto de vista freudiano de que os sonhos representam, na sua essência latente, a realização de um desejo recalcado por causa da censura vai de encontro ao pensamento de seu contemporâneo e discípulo Carl Jung. Para Jung – que não crê que o conteúdo manifesto é um disfarce[5] –, caducou faz tempo a concepção de que os sonhos são “apenas” realização de desejos recalcados. Entretanto, isso não impede que Montgomery Clift – a personagem Freud –, através da “associação livre”, desvende o sonho incestuoso de sua paciente Cecily. Sob este enfoque, pode supor-se que os mecanismos de elaboração do sonho permitem um compromisso entre as exigências do Ego e a motivações recalcadas, como bem salienta Lagache (1961), em seu livro “A psicanálise”. Freud chamou essa substituição de um desejo por um objeto manifesto de “deslocamento” – termo psicanalítico que por si só oferece subsídios teóricos para uma outra resenha como esta.
Não é sem orgulho que Freud se congratula de ter descoberto a técnica da “associação livre”. Para ele, os pacientes precisam poder se expressar livremente, sem censura, sem opressão. Esta descoberta de Freud, sem nenhum medo de contradição efetiva, representa para nós um importante avanço para a condição humana. Porque a chave para a compreensão dos sintomas neuróticos está escondida no inconsciente dos pacientes e os sonhos são “o caminho régio para o inconsciente”. Devido à censura o paciente não sabe o que recalcou e só ele pode conduzir o terapeuta à descoberta da chave deste caminho. Quando há a empática relação entre psicanalista e psicanalisado surge aquilo que conhecemos como transferência; o oposto da transferência é a resistência: uma tentativa de desviar a emergência das coisas desagradáveis.
Por outro lado, o filme “Freud – Além da alma” não é um filme produzido para um público leigo em Psicanálise, porque o jargão profissional psicanalítico – elemento constante durante o enredo fílmico – decerto cria angústia àqueles não-familiarizados com termos como transferência, resistência, Complexo de Édipo, entre outros não menos complexos na sua significação. Diante desta situação, só cabe ao público leigo pensar em duas coisas que a lógica aconselha a usar frente a tais situações: execrar a Psicanálise, ou, ao contrário, procurar compreendê-la. No entanto, isso não compromete o insight geral da produção cinematográfica: o relato do engatinhar da Psicanálise, com o seu método revolucionário e, acima de tudo, a dissidência de Freud com a sociedade médica vienense.
Ao assistir ao filme “Freud – Além da alma” pela primeira ou pela segunda vez, porque o que é bom merece bis, como diz o axioma popular, temos a impressão psicossomática de não estarmos diante de nada de novo, do ponto de vista de nossas experiências em nosso universo psicossocial e familiar: os desejos reprimidos ou recalcados por causa da maldita censura, os sonhos realizando desejos (apesar, por exemplo, de Jung nunca ter concordado com Freud que o sonho fosse uma fachada a esconder, como que maliciosamente, o sentido verdadeiro), as projeções, o apaixonar-se pelo outro como é tão comum acontecer entre analista e paciente; enfim, a sexualidade, todos estes tópicos retratados pelo cineasta John Huston fazem parte de nossa vida cotidiana com todas as suas rupturas e instabilidades.
Por falar em apaixonar-se pelo outro, um tema que se explicita a céu aberto durante a exibição do filme em discussão é a previsível situação em que a paciente (Cecily) de Breuer – o braço direito de Freud – se apaixona por ele, o que cria uma pontinha de ciúme não só à esposa de Breuer, mas também à de Freud que tomara conhecimento da possibilidade de estes amores de consultórios serem possíveis de se estabelecer entre o analista e o analisado. Isso prova que John Huston, à moda hollywoodiana, no tocante à criação de conflitos entre casais, cria uma pequena intriga secundária, o que não compromete, em essência, o andamento de sua película, em hipótese alguma. Ao contrário, parece até aumentar um pouco mais o clima de tensão que o filme gera na sua contextualização, fato este que não passa despercebido pelo olhar clínico do telespectador, por nós mesmos que adoramos nos deparar com uma intriga, principalmente, uma intriga amorosa.
Ainda dentro da temática do estar enamorado por alguém, respondendo ao que ficou em aberto parágrafos atrás, aliás, uma das melhores cenas do filme, é o instante em que Freud ao conversar Cecicly – ex-paciente de Breuer – descobre que a paciente mantinha um amor recôndito – uma paixão secreta – pelo pai e que era esse um dos motivos que a atormentava em sua relação com a mãe – sua rival desde tenra infância. Eis aqui a essência do Complexo de Édipo – mola-propulsora do processo de desenvolvimento psicossexual do sujeito. No Complexo de Édipo, o mecanismo de repressão trabalha no inconsciente e as lembranças desagradáveis são eliminadas da consciência com a intenção de evitar o desprazer, a vergonha e a dor causados por pensamentos incestuosos: todos estes elementos estão configurados no discurso da paciente Cecily quando colocada sob hipnose por Breuer ou quando submetida à técnica de associação livre de Freud.
Por fim, em “Freud – além da alma”, a trilha sonora que se ouve no início do filme dá um tom sombrio à narrativa fílmica e ela se assemelha à da série “Além da imaginação” – “Twilight zone” – uma série que retrata todos os conflitos humanos através de metáforas da vida. Segundo comentários da crítica cinematográfica, em “Além da imaginação” há uma quinta dimensão além daquelas conhecidas pelo homem. É uma dimensão tão vasta quanto o espaço e tão desprovida de tempo quanto o infinito. É o espaço intermediário entre a luz e a sombra, entre a ciência e a superstição; e se encontra entre o abismo dos temores do homem e o cume dos seus conhecimentos. É a dimensão da fantasia. Uma região “Além da imaginação”. O filme “Freud – além da alma” difere de “Além da imaginação” porque neste há a presença da ficção emotiva sobrepujando a razão, o sentido lógico de todas as coisas; naquele há o oposto: a razão sobrepuja a ficção, as asas da imaginação. E isto é fato. E é demonstrado na película de John Huston.
Tudo passa sobre a Terra.
Referências bibliográficas
APPIGNANESI, Richard. Conheça Freud. São Paulo: Proposta Editorial Ltda, 1979.
BETTELHEIM, Bruno. Freud e a alma humana. Tradução e Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Cultrix, 1982.
CALLUF, Emir. Sonhos, complexos e personalidade: psicologia analítica de C. C. Jung. São Paulo: Editora Mestre Jou.
Chevalier, Jean, GHEERBRANT. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 16ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 2001.
FREUD, Sigmund. Freud livro 30: Gradiva de Jensen e escritores criativos e devaneio. Tradução de Maria Aparecida Moraes Rego. São Paulo: Imago, 1976.
______. A interpretação dos sonhos. Tradução de Walderedo Ismael de Oliveira. São Paulo: Imago, 1999.
LAGACHE, Daniel. A psicanálise. São Paulo: Difusão Europeia do livro, 1961.
JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da psicanálise: de Freud a Lacan – as bases conceituais. 4 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2005.
SINOPSE de “Freud – além da alma”.
Minicurrículo:
Leni Lourenço de Oliveira.
Prof. Dr. de Comunicação, Letras e Semiótica.
Professor universitário da Uniesp – União das Instituições de /ensino Superior do Estado de São Paulo.
Psicanalista freudiano e junguiano.
[1] Segundo o próprio Freud, o termo psicanálise designa: 1º – Um método de investigação de processos mentais mais ou menos acessíveis qualquer outro método. 2º – Uma técnica de tratamento dos distúrbios neuróticos, baseada neste método de investigação. 3º – Um corpo de conhecimento psicológico cujo acúmulo tende à formação de nova disciplina científica, 1922. LAGACHE, Daniel. A psicanálise, p. 7.
[2]Intrinsecamente, o Complexo de Electra se resume no mesmo problema do complexo de Édipo. A única diferença está nas pessoas que entram em jogo. No complexo de Édipo se verifica o apego erótico do filho pela mãe, com o desenvolvimento paralelo de ódio pelo pai. No complexo de Electra, a filha encontra na mãe uma rival que compete com ela na disputa das simpatias do pai. Assim, a filha deseja, inconscientemente, eliminá-la e possuir o pai.
[3] Ao longo do dia e da noite, em nossa linguagem, nossos gestos ou nossos sonhos, quer percebamos isso ou não, cada um de nós utiliza os símbolos. Eles dão formas aos desejos, incitam a empreendimentos, modelam comportamentos, provocam êxitos ou derrotas. Sua formação, seu agenciamento e sua interpretação são do interesse de diversas disciplinas: a História, das Civilizações e das Religiões, a Linguística, a Antropologia Cultural, a Crítica da Arte [é exatamente isso que faço agora ao fazer a análise do filme Freud – “Além da alma” – uma crítica da arte do Cinema], a Psicologia, a Medicina. CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT Alain. Dicionário de símbolos. Introdução, p. XIII.
[4] Em “A interpretação dos sonhos” (“The interpretation of dreams”, 1900), que desvendou ao nosso entendimento não só o significado de sonhos mas também da natureza e o poder do inconsciente, Freud discorreu acerca de sua árdua luta para obter uma autoconsciência cada vez maior. BETTELHEIM, Bruno. Freud e a alma humana, p. 16.
[5] “Através duma sinfonia um músico exprime o que lhe vai na alma: será a sinfonia o disfarce doutra coisa qualquer que o músico não quis revelar mais claramente ou o único meio de expressão, o melhor meio de expressão que encontrou para concretizar seus sentimentos?”. CALUF, Emir. Sonhos, complexos e personalidade, pp. 58-59.