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O Bisavô Joaquim e Os Fios Narrativos

Por Jesse Salvino Cardoso.

O viajante ao viajar busca entende-se melhor a si mesmo e a olhar o mundo em outras perspectivas. O autoconhecimento é ainda uma das facetas do longo processo que e a viagem em si.

Trata-se de uma fuga não declarada dos problemas familiares e cotidianos que azedam semanas e dias, e a fuga serve para isso, cada viajante parte em busca de uma aventura que possa viver em paz e tranquilidade durante alguns dias da sua vida.

A busca por aventura ou experiências agradáveis deve também fazer parte do pacote, é uma parte importante de todo o processo, é um esforço para sair da rotina, e requer planejamento e outros detalhes como preparar malas. Nessa última viagem, tive a oportunidade de visitar a casa de meu bisavô Joaquim falecido á nove anos. Um ancião que viveu noventa e um anos, considerado nosso patriarca.

Mas por que razão ele detêm os fios narrativos?

A ideia de que se tem de um patriarca, é que ele conta estórias às crianças. Na verdade um conceito bíblico e semítico, já transferindo para o contexto português e por extensão brasileira e tropical; o “patriarca” assume o papel de detentor da tradição, no caso do contexto português.

Ele ao deter em suas mãos a tradição em sua absoluta essência, como o patriarca escolhe a quem quer em termos práticos para desenvolver e manter essa tradição bem fundamentada nos traços genealógicos tracejados por seus antecessores. Sua sabedoria pessoal era pautada por infinitas partículas de experiência que a vida lhe concedeu, não era somente saber como viver bem em sociedade.

O ancião passou essa máxima para os seus filhos, netos e bisnetos. Sua vida era pautada pela sabedoria e pela experiência, a primeira sempre complementa a segunda e vice-versa, nessa visão propositiva ressurge a mentalidade, de que deter a tradição aumenta a potencialidade da mesma, e permite a reconstrução do passado como um tecido colorido e vivo da vida. Os noventa e um anos de existência comprovam essa pura simetria que ele pode aliar , segundo um ditado africano quando um velho morre, queima uma biblioteca, esse provérbio se encaixa nesse contexto.

Os fios narrativos na verdade são a vida de filhos e filhas, netos e bisnetos que contaram suas peripécias aos companheiros, colegas e conhecidos ao longo de suas vidas, e cabia a ele alinhavar tudo com detalhes e transmitir para as próximas gerações que logo iriam assumir suas posições. Há duas leituras que se encaixam bem nesse contexto, A Invenção da Tradição e a Produção de Sentidos, a primeira sendo o construto advindo de obra escrita por um historiador, e a segunda também um construto advindo de obra escrita por um crítico literário. As duas obras foram mencionadas em outros artigos publicados neste jornal.

Na primeira obra referida o historiador Erick Hobsbawn comenta em seu livro, que a tradição é na verdade uma invenção social que alimenta as gerações do presente e do futuro. Em seu trabalho de aprofundamento, Hobsbawn concebe que a tradição deve ser conservada pelos anciãos e anciãos, e depois ser retransmitida para os mais jovens. Segundo o mesmo esse processo envolve não só palavras, mentalidades, práticas gastronômicas, e hábitos culturais; e nesta instância filhos ficam encarregados de mantê-los e transmiti-los para que a visão e concepção familiar de mundo se mantenham ao longo do tempo. Hobsbawn enumera um conjunto de fatores que fazem com as tradições sejam importantes. Ficando preso ao passado e ao presente ao mesmo tempo diz que as tradições servem como reguladores sociais padronizando sociedades e comunidades para uma boa convivência.

Por outro lado temos a obra Produção dos Sentidos, nessa obra o crítico literário Hans Ulrich Gumbrecht esboça a tradição na perspectiva da história literária a partir da evocação da figura do trovador como o criador de uma tradição lírica e poética deve ser sempre revisitada e retrabalhada por outras vozes poéticas e narrativas de todos os tempos. O crítico aponta que a tradição pode ser renovada de tempos em tempos. A visão dele fornece a pista de que as tradições em suas essências podem ser aprimoradas e aperfeiçoadas mediante o engajamento das novas gerações. Ele percebe ainda que a virtude das novas gerações perante a permanência da tradição fica o príncipio da ousadia sob á luz deste aspecto, o crítico literário tem certa razão em considerar a relevância da ousadia do primeiro trovador quanto à ousadia dos jovens em receber e transmitir a tradição aos outros inclusive os não familiares. A sabedoria do crítico e a relevância dos aspectos referidos pelo historiador são pontuais ao se referir a tradição como uma estrutura social.

A propósito de uma conclusão inconclusa, o leitor pode entender que as conexões feitas por Hans Gumbrecht e Erick Hobsbawn transcendem a concepção de apenas de viver bem tratada na outra coluna anterior. A ótica dos escritores observa os desdobramentos de uma tradição, a mudança de olhar os dois construtos inspira uma renovação na interpretação dos fatos, retornando ao ancião referido no título, que usou a tradição ao influenciar outras gerações com sua tradição particularizada que foi agora ampliada e divulgada por seus familiares ao longo da existência. Caro leitor não deixe de ler as duas dicas de leituras realizadas acima no inicio da coluna, e sempre nos acompanhe nesse jornal.

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