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Por Fernanda Lopes
Eu dava aula de literatura para o ensino médio quando a conheci. Era uma quarta-feira qualquer, dessas em que o calor parece pesar sobre os ombros como um fardo invisível. Havia saído mais cedo da escola para resolver um problema no centro e, enquanto esperava o ônibus, me distraía com o celular, os olhos preguiçosos percorrendo a tela sem realmente absorver nada. Foi então que ela sentou ao meu lado.
Vestia uma blusa azul simples e uma calça jeans, peças comuns que não diziam nada sobre quem ela era. Mas o olhar, ah, o olhar dizia muito. Carregava uma inquietação bruta, um turbilhão de pressa e tristeza contida, como se sua alma estivesse sempre prestes a pegar um trem que nunca chegava. Era um olhar que parecia pesar tanto quanto aquele calor insuportável.
Não sei bem por que puxei conversa. Talvez porque aquela energia tensa emanava dela como um campo magnético, me puxando para sua órbita. Quando respondeu, sua voz era baixa, mas firme. Disse que estava de passagem, que não costumava ficar muito tempo em lugar nenhum. Havia algo na maneira como falava que me fez pensar em fuga. Quis perguntar mais, mas me contive. Nunca fui boa em conversas com desconhecidos, e aquela mulher parecia guardar segredos que poderiam engolir qualquer curiosidade.
O ônibus chegou e sentamos juntas, permitindo que a conversa seguisse sem que eu precisasse confessar minha curiosidade crescente. Ela contou que gostava de ler, mas não livros muito longos. “A vida já é longa demais para algumas histórias”, disse, soltando um sorriso curto, quase irônico. Perguntei qual era seu favorito, e ela demorou um instante antes de responder: “O Estrangeiro, do Camus”. Franzi a testa, impressionada. Um livro sobre indiferença e destino. Sobre um homem que observa a própria vida de fora, sem interferir no fluxo dos acontecimentos.
O ônibus sacudia levemente, mas ela se mantinha rígida, atenta. Seus olhos iam ao relógio com frequência, como se o tempo a perseguisse. Notei a mochila que ela segurava com força, pressionada contra o corpo como um escudo. O tecido estava ligeiramente puído nas alças, mas era volumosa, carregada de algo que parecia mais do que simples pertences. A essa altura, minha mente já corria solta. Aquela não era a postura de uma passageira casual. Por que tanta pressa? Por que tanta tensão no olhar? O que havia naquela mochila que parecia mais preciosa do que sua própria respiração?
Quando chegamos ao centro, ela se levantou antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Saiu do ônibus sem olhar para trás, pisando firme, determinada, como alguém que segue um destino traçado. O veículo arrancou devagar, e eu a observei pela janela, sentindo um arrepio na espinha. Foi nesse instante que um pensamento absurdo me atravessou como um raio: e se ela fosse uma mulher-bomba?
Meu corpo ficou rígido por um segundo, o coração martelando no peito. Depois, me forcei a rir de mim mesma. Que ideia ridícula! Mas, ao mesmo tempo, era um pensamento que não me largava. E se todos ao nosso redor carregassem segredos desse tamanho? E se cada mochila escondesse algo prestes a explodir – talvez não de forma literal, mas emocionalmente? Quantos desconhecidos cruzamos por aí, sem imaginar que dentro deles há tempestades prontas para desabar?
Nunca mais a vi. Talvez tenha sido apenas uma viajante comum, alguém com pressa de chegar a algum lugar ou de fugir de outro. Ou talvez fosse alguém que sabia que a vida, no fundo, não passa de uma sucessão de desencontros. Mas, até hoje, quando entro em um ônibus e vejo alguém segurando uma mochila com força demais, lembro daquela quarta-feira abafada e daquele olhar carregado de tudo o que eu nunca saberei.
Fernanda Lopes, Jornal Choraminhices.
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