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Por Fernanda Lopes
Outro dia, me peguei refletindo sobre o que significa realmente “conviver” com alguém. Talvez seja o fim do ano, com suas retrospectivas inevitáveis, ou apenas uma inquietação comum que insiste em me puxar para perguntas sem respostas fáceis. “Com quantas pessoas eu realmente convivi este ano?” — pensei. Resolvi buscar a definição de conviver no dicionário, talvez esperando uma epifania. O que encontrei foi decepcionante: “viver com outro; ter intimidade”.
Só isso? Seria isso tudo que “conviver” implica? Fiquei ali, encarando a definição, sentindo-me como quem recebe uma resposta apressada a uma pergunta carregada de profundidade. “Viver com outro”. É verdade, claro. Mas a convivência não é feita só de proximidade física. Aliás, quantas vezes estamos próximos de alguém e, ainda assim, tão distantes? Às vezes, a presença de um corpo ao nosso lado não significa nada mais que uma mera coexistência, sem qualquer troca real. Quantos momentos compartilhados são apenas uma rotina automática, onde o outro se torna um cenário ao fundo, e não um parceiro ativo de nossa jornada?
Para tentar entender melhor, segui o rastro das palavras. “Viver” e “Existir”. Afinal, como se convive sem viver? O próprio dicionário diz “viver com o outro”. E viver não é, afinal, o próprio ato de existir? Fui ao dicionário de novo. Viver: “Ter vida. (= Existir); Passar (a vida); Passar a vida de tal ou tal maneira”. “Existir”: “Ter existência; Viver; Durar; Estar vivo”. Tudo muito direto, muito prático, mas tão… raso. É como se alguém tentasse me explicar o oceano dizendo apenas: “tem água”.
Então, parei para pensar na diferença entre viver e existir. Existir é estar ali, no tempo e no espaço, respirar e ocupar uma vaga no mundo. Existe algo de passivo nisso, como um objeto, uma pedra, uma árvore ou até mesmo um corpo humano respirando. Tudo isso existe, mas sem vontade ou intenção. É um estado inerte, sem reflexão ou transformação. Não exige mais do que a simples presença, como um ponto no mapa, imune ao movimento do relógio, indiferente ao mundo ao redor. O ato de existir pode ser comparado a um estado de permanência, algo que é uma condição quase indiferente ao que acontece ao redor. Mas viver… viver é outra história.
Viver é transformar essa mera existência em algo pulsante, algo que exige escolhas. Viver não é só estar presente, mas é decidir o que fazer com o tempo e com o espaço que ocupamos. Viver é sentir, se emocionar, aprender, criar, crescer e, sobretudo, fazer algo de significativo com os momentos que nos são dados. Viver é uma atividade, uma ação contínua e dinâmica, uma constante busca por sentido. É uma decisão diária, não é apenas existir. Viver é imergir na experiência, fazer escolhas, sentir o peso e a leveza de cada decisão. Não é só estar no tempo; é fazer com que o tempo se mova ao nosso redor, moldando-o, de certa forma. Viver envolve ação, emoção, reflexão. Viver é, na minha opinião: fazer escolhas conscientes sobre como passar nossos dias, e não deixar que eles simplesmente “passem”. Só que e conviver? Conviver, percebi, é quando nossos passos começam a encontrar os de outra pessoa.
Desse modo, conviver não é só estar junto. É o ponto de encontro entre dois processos de viver, ou seja, quando as existências de outros tocam a nossa, criando algo novo, algo maior do que a soma das partes. Não é mais apenas sobre “estar” ou “passar” pelo mundo; é sobre compartilhar. Compartilhar não só o espaço, mas também os sentimentos, os pensamentos, as dores, as conquistas, as derrotas, os silêncios, tudo. É aceitar que, ao lado de outro ser humano, a nossa existência é alterada, é transformada, muitas vezes desafiada. E aqui, nesse entrelaçamento de seres, começam a surgir as tensões, mas também os aprendizados. Quem já teve que dividir um espaço com alguém sabe: conviver é negociar limites, aprender a ceder, descobrir novos jeitos de ser e estar. Não é só “viver com outro”. É construir algo entre dois mundos, e isso pode ser tanto um presente quanto um desafio imenso.
Conviver, então, é esse processo de compartilhamento de vivências, de experiências que se misturam, que se chocam, que se constroem juntas. E é justamente essa dinâmica que o dicionário não consegue captar. Ao se limitar a definições curtas e simplistas, ele nos dá uma ideia rasa do que significa “conviver”. Enquanto as palavras do dicionário se resumem a uma convivência física, a realidade nos mostra que: existir é um fato; viver é uma escolha; e conviver é a arte de permitir que essas escolhas se toquem, se misturem e, talvez, se reconfigurem.
E aí, eu me pergunto: o que significa conviver para você? Quantas pessoas realmente fizeram parte da sua vida este ano? Não apenas cruzaram o seu caminho, mas “entraram”, de verdade, na sua jornada? Quantas pessoas, de algum modo, se entrelaçaram ao seu cotidiano, alterando seus ritmos, ampliando suas perspectivas, desafiando suas convicções? Quantas, além de apenas estarem ao seu redor, realmente se tornaram parte de quem você é agora?
Às vezes, acho que a simplicidade das definições nos engana. Elas parecem querer aprisionar ideias complexas dentro de uma gaiola de palavras fáceis. Como se fosse possível explicar o que é conviver, viver, ou existir em uma frase curta e sem vida. Talvez os dicionários sejam úteis para o básico, mas para entender de verdade, precisamos ir além. No fim, não é culpa do dicionário. Ele faz o que pode, com suas limitações. Mas cabe a nós ir além das páginas, mergulhar no que as palavras não dizem e encontrar, na vida, o que elas realmente significam.
Fernanda Lopes, Jornal Choraminhices.
2 Responses to Dicionários e o perigo das definições simples demais